Sábado ou
Domingo? O Dia do Senhor
Utilizo deste texto para demonstrar o quão antiga é essa
discussão e como não é algo que pode ser resolvido nas redes sociais, em
podcasts ou por teólogos de YouTube.
A frase "o dia do Senhor" (gr. te kyriakē hēmera)
ocorre uma só vez, e isto se dá no último livro do Novo Testamento (Ap 1.10).
Seu significado é debatido. Alguns a interpretam como uma referência ao dia
escatológico do Senhor. Para outros, refere-se ao Domingo da Páscoa. A maioria,
no entanto, entende que se trata de uma referência ao primeiro dia da semana, o
domingo.
Referências posteriores na literatura cristã primitiva em
que o adjetivo (gr.kyriake) era usado sozinho parecem apoiar isto. Inácio,
bispo de Antioquia, escreveu aos magnésios por volta de 115 d.C.,
conclamando-os a "já não viverem pelo sábado mas pelo dia do Senhor (gr.
kyriakën], sendo que neste dia ressuscitou a nossa vida" (9.1). Num manual
antigo de instrução eclesiástica, o Didaquê (c. de 120 d.c), os cristãos eram
dirigidos a se reunirem para adorar no Dia do Senhor (14.1). Segundo o
Evangelho de Pedro, apócrifo (c. de 130 d.C.) na noite anterior ao Dia do
Senhor a pedra foi rolada para longe do túmulo (9.35). Na aurora do mesmo dia
(gr. orthrou de tes kyriakes) o túmulo vazio foi visitado pelas mulheres
(12.50). A atração da frase era, no mínimo, dupla. Expressava a convicção
cristã de que o domingo era o dia da ressurreição, quando Cristo Jesus
conquistou a morte e se tornou Senhor de todos (Ef 1.20-22; 1 Pe 3.21-22) e um
dia que previa a volta daquele mesmo Senhor. para consumar a Sua vitória (1Co 15.23-28,
54-57).
No NT, o domingo era geralmente designado como "o
primeiro dia da semana (gr. mia sabbaton, e.g., Mt 28.1; Mc 16.2; Lc 24.1; Jo
20.1). O termo "sábado"'(gr. sabbatön) referia-se tanto ao sétimo dia
da semana, o sábado, como à semana de sete dias na sua totalidade. Visto que
somente o sábado tinha um nome específico, os demais dias da semana eram
distinguidos por números ordinais, sendo que o domingo era "o
primeiro".
O termo "dia do sol" (gr. heliou hêmera; nome
correspondente a "domingo" em muitos idiomas), nunca usado pelos
escritores do NT, apareceu pela primeira vez na literatura cristá na obra de
Justino (c. de 150 d.C.; Primeira Apologia 67.3), que seguiu o calendário
romano. O nome "dia do sol" veio aos romanos através dos egípcios, que
já em tempos antigos adotavam uma semana de dias que tinham os nomes do sol, da
lua e de cinco planetas. Para os romanos, o primeiro dia da semana era o dia do
sol (lat. dies solis). Com o passar do tempo, no entanto, a designação cristã
dominical) veio a substituir o termo '"o Dia do Senhor" (lat. dies
"dia do sol" em todo o Império Romano. As línguas neolatinas,
desenvolvidas do latim comum, refletem esta mudança, e chamam o primeiro dia da
semana de domingo (português e espanhol), domenica (italiano) e dimanche
(francês).
A Prática Primitiva. O fato de que a igreja primitiva se
reunia habitualmente aos domingos durante a era do NT não pode ser demonstrado
de modo inequívoco. Duas referências no NT, no entanto, sugerem que isto
acontecia. Paulo reuniu-se com a igreja em Trôade (At 20.7) no primeiro dia da
semana, numa reunião que parecia ser regular, embora prolongada. Além disso,
ordenou que a igreja em Corinto fizesse sua coleta para os necessitados num
domingo (1 Co 16.2), prática esta que, provavelmente, mas não necessariamente,
coincidia com a reunião da igreja. Se estas reuniões começavam segundo o plano
judaico de calcular os dias (de um pôr do sol até o outro), no final da tarde
do sábado, ou segundo o plano romano (de meia-noite a meia-noite), num domingo,
também é debatível, mas a última probabilidade é maior. Segundo Plínio, um
governador romano da Ásia Menor (c. de 95-110), os cristãos reuniam-se ao
alvorecer de um dia regularmente estabelecido (lat. stato die) para adorar a
Cristo, e depois tinham uma reunião posterior no mesmo dia para tomar uma
refeição (Carta a Trajano 10.96.7), prática esta que reconhecia o dia romano.
Os cristãos em Corinto, de modo semelhante, reuniam-se para uma refeição
comunitária que incluía a observância da Ceia do Senhor (1 Co11.17-34). Não se
pode determinar se havia reuniões de manhã e de tarde. Se os comentários subsequentes
de Paulo a respeito da adoração (1 Co14.26-40) visavam conformar a prática
corintia àquela que estava em vigor em outros lugares (cf. 14.33), logo, a
reunião de domingo também era marcada por uma participação congregacional
considerável, incluindo-se os cânticos, as orações e a proclamação. Segundo
Justino (Primeira Apologia 673-6), os cultos de domingo incluíam a leitura das
Escrituras, a exortação, as orações coletivas e individuais, a Ceia do Senhor e
uma coleta.
A Teologia do Dia do Senhor. Não se sabe quando a igreja
primitiva começou os cultos aos domingos. Os escritores do NT sequer oferecem
uma base lógica para a mudança l das reuniões da observância do Dia do Senhor
do sábado para o domingo, mas vários fatores podem ser sugeridos. (1) O sétimo
dia, o sábado, já não era considerado um dia a ser especialmente observado pela
adoração e pelo descanso do serviço (Rm 14.5-6; GI 4.8-11; CI 2.16-17; cf. At
15.28-29). (2) O evento da ressurreição, central no evangelho cristão (e.g, At
2.31; 4.2, 10, 33; 10.40; 13.33-37; 17.18; Rm 10.9; 1 Co 15.4, 12-19; 1
Ts1.10), ocorreu num domingo. (3) Quando os escritores do NT designaram os
vários dias em que o Cristo ressurreto apareceu e falou aos Seus discípulos,
referiram-se uniformemente a domingos (e.g., Mt 28.9; Lc 24.13-34; Jo 20.19,
26). (4) A vinda do Espirito Santo (At 2) ocorreu no Dia do Pentecoste, num
domingo. (5) Depois da era do NT, o primeiro e o "oitavo" dia da
semana (dois domingos) eram mencionados respectivamente como o dia da criação
divina (Justino: Primeira Apologia 67.7) e o dia que antecipava a nova criação
ou a eternidade (Barnabé 15.9; cf. 2 Enoque 33.7). O domingo, portanto, era visto
como as "'primícias" do estado futuro eterno (cf. 1 Co 15.20). Além
disso, talvez os cristãos esperassem a volta do Senhor no Seu dia (cf. Lc
12.35-36).
Por trás de cada uma destas razões, no entanto, pode ter
havido o desejo da igreja primitiva de se distinguir do judaísmo e das suas
observâncias sabáticas distintivas.
Carlos Carvalho
Teólogo.
COENEN & BROWN. Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento / Collin Brown, Lothar Coenen (orgs.); [tradução Gordon Chown]. – 2.ed. – São Paulo: Vida Nova, 2000.
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