quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Bios, Psique e Zoe – A Vida em Detalhes

 

 

O ladrão não vem senão a roubar, a matar, e a destruir; eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância. Eu sou o bom Pastor; o bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas.

João 10:10,11 (ACF)

Como estudantes da Palavra, às vezes nos encontramos em uma encruzilhada interessante, que certamente e muito mais, passaram os tradutores da Bíblia para nosso vernáculo (o idioma que falamos), quando se depararam com textos que são traduzidos por uma única palavra no português, mas que de fato são palavras diferentes no texto original. Esse é o caso da palavra “vida”. Para nós, há somente uma palavra para designar todas as coisas pertencentes à esfera da existência, tanto interior como exterior, tendo como diferença de significados apenas o sentido que se emprega nas frases. Em outras palavras, o sentido de “vida” em nosso idioma é dado pela frase na qual a palavra está e não pela própria palavra em si, ou seja, são as derivações que dão sentido a ela.


Já no grego (língua básica do Novo Testamento), existem três palavras principais para “vida” e elas possuem significados diferentes independentes das frases nas quais se encontram. É o caso do texto acima. Embora em nosso idioma a palavra seja a mesma nos dois versículos, em grego não são iguais e isso altera a percepção que deveríamos ter da sentença que lemos. Inicialmente não vamos à interpretação da tradução do texto, mas iremos às próprias palavras que aparecem no NT[1] como tentativa de entender o significado delas. Isso é muito importante para a correta compreensão dos textos. Não sou especialista em grego e nem em NT, mas com as ferramentas corretas, qualquer estudante aplicado poderá fazer uma tradução e interpretação mais acurada das Escrituras.


A primeira palavra é bioV (bios). Bios se relaciona com o viver, denota a “vida” nas suas manifestações externas e concretas. Desde o seu surgimento, se refere ao “curso da vida”, “duração da vida” ou “modo de vida”. Bios é uma palavra rara no NT, ocorre apenas 11 vezes e tem um significado claramente temporal e finito. A “vida” (bios) é, portanto, física, temporal, curta e finita. Basicamente, parece que este é o único conceito de vida que nos é apresentado nas escolas e universidades e do qual estamos bem inteirados. Mas é somente um terço do total significado da vida. Quando diminuímos o seu significado, ficamos aquém dela e passamos a pensar na vida em termos somente biológicos, químicos e mecânicos. Parece algo inteligente, mas é uma inteligência limitada.


A segunda palavra é yuch (Psichê). É de onde se deriva nossa palavra “alma”. Se examinada detalhadamente, desde seus usos mais antigos, ela significa basicamente três coisas: 1) a base impessoal da vida ou a própria vida, 2) a parte interior do homem e 3) uma alma independente do corpo. No Antigo Testamento, ela significa em linhas gerais o “hálito da vida”, o “coração”, o “homem interior” ou um “ser vivente”. No NT, ela ocorre 101 vezes e significa a sede da vida, a vida inteira de alguém. Psichê abrange, portanto, a totalidade da existência e vida do ser humano, com a qual se preocupa e da qual tem cuidado constante. Essa palavra equivale ao ego, à pessoa ou à personalidade do homem. Psichê é a vida interior do ser humano. Não nos aprofundaremos mais aqui.


A terceira palavra é zwh (zoe). Para o grego clássico, zoe é a qualidade de vida da natureza da qual os homens, os animais e as plantas partilham juntamente. Mais tarde se tornou “luz”, algo essencialmente divino ou uma coisa indestrutível que possui poder vivificante. No Antigo Testamento a vida, em síntese, é essencialmente realista, religiosa e comunitária, ou seja, vida é a existência humana no seu dia-a-dia, com todas as suas nuanças e alternativas, e ao mesmo tempo, conectada a Javé, o Criador da Vida.  Já no NT, a vida é assunto extremamente importante, não apenas denota a existência, mas zoe se refere a própria vida de Deus comunicada aos que a receberam em Cristo. Essa vida é de qualidade superior, ilimitada (pois não é confinada ao tempo histórico) e escatológica, porque nos levará à era futura, que possui uma vida cuja duração não tem fim: a Vida Eterna.


Ao compreendermos bem esses conceitos temos diante de nós o texto inicial. Jesus se expressou de duas maneiras utilizando-se das duas principais palavras do NT:


Primeiro – ele veio para nos trazer a zoe abundante, ou seja, a qualidade da vida interior e exterior semelhante à de Deus em nós e com passagem para além desta própria existência, para a vida eterna (era futura). Essa zoe (vida) começa aqui com o ato de recebê-la pela fé na ressurreição de Cristo Jesus e se manifesta diariamente na prática do amor, da ética do reino e dos princípios da palavra de Deus.


Segundo – Jesus disse que sendo o bom pastor, ele dá a sua psichê (vida) por suas ovelhas. Numa tradução bem literal desta passagem, ela ficaria mais ou menos assim: “Eu sou o bom pastor; e o bom pastor coloca toda a sua alma em favor das ovelhas”. Muda um pouco o sentido, não? Jesus veio para usar toda a sua alma (psichê) ou toda a sua existência para dar aos que cressem nele uma vida (zoe) que não poderia se acabar mesmo em face da morte física (da bios).


Esse conhecimento expande nosso conceito de vida para além da bios (física) e para além da psichê (alma). Nos leva além da natureza humana e para além da academia. Nos coloca em patamar de conhecimento mais completo da vida, ao menos em teoria.

 

© Carlos Carvalho

Pr. Sênior da Comunidade Batista Bíblica Internacional

 

Referências;

Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. Colin Brown, Lothar Coenen (orgs.); [tradução Gordon Chown]. – 2. ed. Vol I e II. – São Paulo: Vida Nova, 2000.

Luz, Waldyr Carvalho, Novo Testamento Interlinear / Waldyr Carvalho Luz. – São Paulo, SP: Hagnos, 2010.



[1] NT – Novo Testamento

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